É inevitável passar a vida respondendo à pergunta “de onde sua família é?” quando se nasce e cresce no Brasil com um sobrenome croata, ainda que eu tenha passado a infância e parte da adolescência dizendo “Iugoslávia” como resposta. Foi aos poucos que minha avó e meu avô, ela nascida na Vela Luka e ele em Djakovo, foram me falando da Croácia.
Minha avó me mostrava um poster na parede do salão da Sociedade Amigos da Dalmácia, a nossa SADA, então SAIUG, e me dizia: “essa era a minha escola”. O poster mostrava uma foto da Vela Luka, os prédios de pedra, a primeira visão que temos quando chegamos lá, de barco ou balsa (foto acima). Foi a visão que tive, em 2022, quando pisei na Vela Luka pela primeira vez. A foto que vi por tantos anos na parede, agora ali, iluminada diante dos meus olhos. As lágrimas turvaram um pouco a visão, o que não atrapalhou a beleza. Talvez até o contrário.
Vela Luka, que eu via pela primeira vez, pensando na última do meu bisavô, Ivan Dragojević Boško, que de lá saiu acompanhado da mulher, Marja Prizmic de solteira, e do filho e das filhas, dentre elas a minha avó, Miroslava, e mais centenas de conterrâneos. Essa última vez que meu bisavô, que não conheci, registrou em versos:
última vez que te vejo
este foi meu desespero
levaremos tanta esperança
aqui fica toda a lembrança
Foi em um trabalho sobre a imigração para a escola que me lembro de ter ouvido falar dos versos do meu bisavô pela primeira vez. Fazia uma entrevista com a minha avó quando ela me disse: “meu pai escreveu sobre a nossa vinda, está tudo em versos, ele era poeta na nossa língua”. Minha avó, que no Brasil era analfabeta funcional. “Na nossa língua é bonito, tem rima”. A rima se perdeu na tradução para o português, feita por uma das filhas, Maria. As filhas e filho de Ivan Dragojević Boško, conhecido na terra natal como Veli Ivan, não conseguiram estudar no Brasil. As tecelagens da Mooca receberam todos muito novos. A necessidade falou, e sempre fala, mais alto.
O caderno com a epopeia era joia guardada na casa da Tia Maria. Descoberto por Gregório Bacic, foi doado para o estado de São Paulo na década de 1980, a família toda presente na cerimônia de entrega, tenho uma fotografia na memória da letra do Veli Ivan nas páginas pautadas. E foi só depois, mais velha, que realmente entendi a importância desse caderno para a história dessa imigração.
Em 2022, na biblioteca da Vela Luka, fui com meu pai e meus filhos me apresentar como “bisneta de um homem que saiu daqui em 1925 e escreveu a viagem em versos…”. Nem terminei de falar e a bibliotecária veio com um livro: “aqui tem uma poesia do seu bisavô”. “Mas eu nem disse o nome dele”, respondi, “como você sabe quem é?” “A gente conhece”. E, no livro, uma poesia inédita, escrita para um amigo morto depois de uma longa doença.


Um bisavô marinheiro e poeta, impossível não pensar nos narradores descritos por Walter Benjamin. Eu, a bisneta que ama literatura e que escreve sem parar desde que foi alfabetizada. A bisneta que sente algo do Veli Ivan no sangue. Que, quando abre um caderno ou uma página em branco no computador, faz um chamado a esse “dida”.
Como seriam as nossas vidas se essas pessoas não tivessem cruzado o Atlântico no Sofia? Seriam as nossas vidas, existiríamos? Talvez essas perguntas já tenham aparecido em outras mentes. Perguntas que não fazem nenhum sentido. O que temos é uma vida (muito boa) no Brasil.
Ivan deve ter morrido por volta dos 60 anos em São Paulo. Marja, nossa baba, morreu com 102, também em São Paulo. A festa de 100 anos foi no salão da SADA. Nós, crianças, achávamos chique “até o cônsul” ter ido. As filhas e o filho de Ivan e Marja Dragojević Boško não conseguiram estudar, mas os netos e netas, sim. Bisnetos e bisnetas mais ainda. Muitos já foram visitar a Veka Luka. Outras gerações estão chegando. Ainda aprendendo a cantar “Tamo na rivi”, que se tornou uma espécie de hino da família, a música que Marja gostava tanto de cantar com as filhas e filho, quando se juntavam todos os sábados após o almoço, ao redor de uma mesa com café, bolos, pão, pimenta, vinho, músicas e risadas.
Ainda no salão da SADA, no último dia 26 de abril, boa parte desses descendentes se juntou para comemorar os 80 anos de um dos netos de Ivan e Marja, José Gerbovic. Dança, comida, bebida e trajes típicos. Teve “Tamo na rivi”.
Enquanto lembrarmos e celebrarmos, todos seguem vivos.
Luciana Gerbovic, bisneta orgulhosa do Veli Ivan